segunda-feira, 29 de junho de 2009

Árvore Genealógica (da Fenícia ao Desconhecido)


Final de 2004. Perdido em meio aos livros e delírios. Garrafas, incontáveis garrafas... Poucos meses fazia que a Morte com seu sorriso lascivo e benevolente aparecia... Foi um ano difícil... Até então não acreditava no fim... Ninguém que eu amava era mortal, muito menos eu... Uma sucessão de despedidas inevitáveis ocorreu de forma avassaladora. Eis algo que não quero lembrar...
Nessa avalanche de tragédias, numa tarde cinzenta anunciando uma chuva branda, lápis e papel na mão, redigi um poema, uma elegia com os olhos cheio de lágrimas e o coração mergulhado de revolta e revestida de uma sublime inquietação, uma inquietação que vinha da alma e maltratava meus dias, passos calejados rumo a loucura.

Baudelaire, Rimbaud, Van Gogh nos mostrou que é preciso penar muito pra chegar a essência da arte. "Poesia é a subversão do corpo". A existência sem limites... Se esquecer e se entregar... "Não existe poeta experimental que não tem vida experimental". Fechar os olhos, abrir a mente, volitar o coração...
"O poema nasce do espanto, e o espanto decorre do incompreensivel"; "de repente, quando se ergue da cadeira, o poeta percebe que o fêmur de uma perna resvala no osso da bacia. Aquilo o intriga. É desse tipo de surpresa que nasce o poema". Penso exatamente como Ferreira Gullar. O espanto da Morte, a solidão voluntária e a decadência, a descida aos infernos me fez compor esse poema como um grito enlouquecido de minha alma. É aquela idéia de santo baixando, dessa coisa estranha que é a inspiração, versos que surgiram de uma só vez numa velocidade estonteante que hoje relembrando e lendo esses escritos me assusta...
Eis aí o poema:

Árvore genealógica

(da Fenícia ao Desconhecido)

A vida é noite; o sol tem véu de sangue!
Tateia a sombra da geração descrida...
Acorda-te mortal! É no sepulcro
Que a larva humana se desperta à vida!
Álvares de Azevedo

Acredito que existe um lugar
Onde as almas aflitas vagam
Sob o peso da própria tristeza...
.......................................................
Porque às vezes...
O amor é mais forte do que a morte.
The Crow, City if Angels

Seus fortes gritos dissolvem como o suor.
I Ching

I

Nasceste em terra sombria, entre bombas e afetos,
Viste as rosas em chão sangrento se inclinarem
Em busca do Sol. Sentindo a alegria dos netos
Anos mais tardes nos peitos se derramarem:
- Era a vida que nascia de Deus, era a sorte
Varrida no bem. Membros que evitavam a morte
Ouviam com atenção cada lição, o aprendizado
Fulgurando sua incrível feição pelo bem...
Pinheiros se erguiam apontando suas faces
Rumo ao habitát natural do grande Criador,
Todo o Oriente de pessoas de falas magníficas
jamais! nunca olvidaram sua história belíssima
Entre deploros, heroísmo, valentia...
Era a força - embuçando a sensibilidade!
Era a pomba - esperando sua reluzente entrada!
Era Gibran - ensinando o mundo a bondade!
E enquanto a chuva acaricia meu todo, lembro
De cada detalhe - eras o belo sonhador,
Nas plagas novas: um eterno pensador,
Um anjo fenício que abre as portas do meandro
Bom. Da laranjeira a romã, do pequi
ao Damasco, do deserto a floresta...
Essa é a vida!... dois povos, uma idéia
E o mesmo capitalismo no universo
E tu, ó meu avô,
O desprendimento material (...), bem aqui
Rompeste a hipocrisia nojenta da família
Odiosa e... orgulhosa (...)!

II

Sonho que engrandece! Tua coroa árabe posta
No estandarte de tua alma, teu amor brasileiro
São cores belas do paraíso. Contudo
Meu coração se entristece: tua ausência, meu avô,
É dolorosa, é fria como a escuridão
Da madrugada, é tenebrosa, é trágica
Como as correntes infames da escravidão!
Volte! Volte, meu avô! Ou leve-me à morte!
Leve-me agora e sempre, leve-me ao Nada!
A paz límpida no seio latente de Deus...
Quero em sangue bege lavar meu ser demente,
Perder-me sem medo na insana torrente
Onde a tristeza mórbida não se encontrou
E nas carícias de amor...
... Enfim me esquecer...

III

Sim!... Um frenesi blasfêmico requeimava
Minhas palavras com um desejo bucólico...
Uma vontade indecifrável de viver
nas garras da floresta, distante de Tudo,
Longe de todos... Que destino turbulento!
Que vida, meu Deus! enforcado nas peripécias
Da desagradável família! "Ó, meu avô,
Salvai seu neto que tanto sofre! Salvai, ó Deus!"
- Era tudo que da minha voca escapava
Naquele inferno... amarrado nas correntes
Sussurros, gritos, xingos, frases ridículas
Ironizavam minha burrice; por pouco quase
... Quase morri... senti a bílis escapando
De minha boca... Ah, Jeová! Devora-me já!
O coração petrificado do bardo sofre,
O peito vil retumba gestos deploráveis
Malícias satânicas, requiéns, inscrições,
Brasões esculpidos nas entranhas do poeta,
O trovador moderno nunca compreendido
Pela "massa" inteligente... alegorias persistentes
Reproduzem em meus desenhos o sectarismo
Doentio nas grades sufocantes dessa casa:
A crença angustiada do cristão. Perdoe-me,
Ó minha mãe, embrião espiritual da existência,
As minhas faltas... meu apego aos vícios da carne
Volte! Volte, meu querido avô! Empina-me
Na altivez da religião!... leve-me pra longe,
Longe desse hospital imundo... a pomba da paz
Quer se apresentar (...), deixe-a entrar, deixe-a entrar...

... Invadir o lar...

IV

A Morte bateu a porta. Tímido eu a chamei.
Já previa sua chegada. - a pomba foi cruelmente
Assassinada. Protegida em um invólucro
Manto a Morte lia com voz trôpega os cânticos
Sagrados da Bíblia. Esquálido eu tremia muito...
A imagem!... apenas uma imagem insistia
Em bagunçar minha mente. Ah! Que pesadelo!
Era ela! é ela! a mulher que eu amo! aó ela!

A doença maldita violentava minh'alma
com cores tristes. Enquanto Prometeus
Queimava meu íntimo sem dó com o fogo
Furtado do Olimpo, meu espírito sangrava
E chorava. - Onde estás que não a vejo, meu amor?
Onde estás, brilho de minha vã existência?...

A Morte quer a valsa - eu quero viver;
O dia quer a noite - eu quero só esquecer...

Vasilhas negras, belezas semi-nuas,
Perpetuações do caos... balbúrdias... visões
Cabalísticas do terror... corpo tombado
No chão, caído feito verme a pensar...
Risos alheios... pegada monódica... ermos...
Prepoderância vil... a morte unindo a ilusão
Com o passado, a cidade, as indústrias,
As fragmentações das ideologias... a Morte...

Ó Morte, o que tu me reservas em teu ventre
De vadia violentado pela sensual vida?

V

Sonho Tolo! O filho da loucura corróe-me
As entranhas nauseabundas... Ó Deus!... as portas
Da jovem Morte ali desnuda ainda me incita,
Induz-me a navegar (só) no mar de ilusões
Sozinho, falido, sem desejos - ambições...
Mas não, ó Deus, não deixe que as horas velem
Meu corpo insepultável sobre as flores falsas
Da normalidade. Ah! "Eis a carne que ão de comer..."
É triste o destino inevitável das aves
Que desnudas se fazem inspiração
Para o poeta e o caçador. O débil túmulo
na sacrossanta família, o vinho nobre
De Dionísio, os versos De Byron e Rimbaud,
Tudo (!), tudo sem confunde em minha mente;
Até mesmo a minha existência se perde
Nas tuas coxas rígidas e no teu ventre
E nem tu, minha bela mulher, percebes...
Que se viu assim atrás de algo que se perdeu...
E se perdeu nos ventos gélidos da morte...
Ao lado das cores funestas de mil cortes...

VII

Caim, meu espelho, matou Abel... Abel se sentiu
Muito traído... a vida caminha corcunda
Mostrando lentamente a face dos inimigos...
E emsu irmãos, herdeiros da mesma lida,
Bebem comigo nas noites frias o conhaque
Ardente da traição. Nas portas melancólicas
Da tirania transamos todos em completa
Solidão... eram as deusas que vinham quentes!
Era o vil destino brincando de ser tenente!
Hoje sou Abel, ontem eu era caim, e unidos
Somos apenas um. Duas almas que moram
Presas na carne da racionalidade;
Duas almas - um corpo - filhos herdeiros da saciedade.
Byron, Shakespeare, Augusto dos Anjos, Rimbaud,
Mestres da loucura, derramem em minh'alma
A poesia fantasiosa da mente humana
E raspem no meu prato o alimento vulgar
Da vida mundana. Me ame, ó Deus, com teu furor;
Seja pra mim, ó Mãe, meu belo condor...

VIII

Ah, que calor! Ó inferno de Dante! Ilusões!
A vida só leva para o caixão as ilusões...

Contudo percebo que nada sou... A existência
Se perde em brumas pesadas... nuvens de fumo...
E no arrebol meu desejo escurece; meu sêmen
Escorre pelas minhas pernas coruscantes...
Ah, que horror maldito! Ah triste Inferno de Dante!
Era tudo o que poderia dizer-vos:
Apertar a garrafa contra meu peito!
Dei-me o cigarro vagabundo de outrora!
A beleza pálida da virgem morta!...
... A culpa perambula sob minhas memórias...
E num baú encontrei as cartas de namoro
De meus antepassados... e li...

Cartas escarradas, voluptuosas declarações...
Eu me perdi... e me percebi
Longe da esfera global...

***

6 comentários:

  1. Muito massa Doug, louco como sempre, sem palavras...

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  2. Lindo, doloroso, profundo... sem palavras!

    "Porque às vezes...
    O amor é mais forte do que a morte."
    Isso tem um significado muito forte... =]


    ...Quando você me contou que havia um abismo no seu peito, e contou dessa dor em seu coração eu dediquei todo o meu tempo em ameniza-la!
    =D

    Beijos Doug^^

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  3. Cara como disse o Ivam..LOUCO COMO SEMPRE, SEM PALAVRAS...=)
    Ou Dou ta muito massa teu Blog, esse ultimo post, ficou muito bacana cara, show de bola!!
    o teu blog da melhor do que odo skalaby..hehehe
    continua assim..
    vlw

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  4. Ou e vamo ver a parada do zine esse final de semana

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  5. Mano, este texto é realmente incrível!
    Eu só rabisco umas palavras e formo meus poemas, porém você brinca com as palvras, as desafia, faz elas entrarem em tua viagem, faz delas a tua viagem. Parabéns. Sou sua fã!

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  6. Ahhh eu tb sou fã dele! \o

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