terça-feira, 31 de março de 2009

Noite de Sábado


Falávamos de Morte. E é tão estranho falar assim. Com essa voz recortada, essa voz muda e silenciosa. Triste presságio de fim desmedido. Um diálogo apaixonado é um estrago, sempre dizia um amigo. Às vezes produz efeitos devastadores. A Morte é assim mesmo: cheia de mistérios e sensações. Linda demais pra ser verdade. E assim certa vez num sábado a noite na porta de casa sob luzes apáticas de tristes postes melancólicos eu mais duas pessoas conversávamos. E era um diálogo tão besta, mas tão besta, pois falávamos de uma coisa inevitável, absoluta, insondável: a Morte.

sábado, 28 de março de 2009

Rogério Skylab - O poeta do cotidiano


A porrada e o dia-a-dia. O delírio e a alienação. Um poeta com olhar delirante caminha por entre arranha-céus de concreto e putas vislumbrando a madrugada acaricia os homens com suas pernas peludas. "Um índio passeia pelo calçadão de Ipanema." Seu Ari "solta peidos horríveis, a memória não funciona." "A professora de piano deu a bunda e nunca mais pensou em homem". "O gordo ao meu lado não percebe nada." Eis aí "o poeta e o poema se apunhalando."
Rogério Tolomei Teixeira (Rogério Skylab) formado em letras e filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) vem ao longo de quase uma década chocando a cena musical com seus discos em forma de série (Skylab I, II, III, IV e por aí vai...) que beiram do trágico ao humor negro. Sempre irreverente proclama uma fusão contraditória, porém interessante: a junção que vai do conceitual ao popular. Seu interesse por paradoxos é o núcleo de sua arte. Uma mistura inusitada: de Franz Zappa a Tati Quebra Barraco como ele mesmo definira. Todavia suas canções sempre vagaram pelo campo da poesia. Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud e Leminski. – Rimbaud?! Isso mesmo. Há uma vaga semelhança nesses dois poetas, profetas do caos, filósofos do cotidiano. Basta ler a "Carta dita do vidente" de Rimbaud direcionada a Paul Demeny em 15 de maio de 1871 e fazer uma analogia a poesia do carioca decendente de italiano Rogério Skylab e notar as diversas semelhanças. No final do texto do francês há um "segundo salmo fora do texto" chamado "Minhas pequenas namoradas". Nesse poema há uma analogia entre amor e violência muito forte. O erotismo está presente e em elevado grau. Leia alguns versos que você chegará a essa constatação, caro leitor. Há fortes exemplos disso.: "nos amávamos naquela época feiosa azul."; "uma noite me chamaste poeta loira feia: vem receber aqui o chicote de mão cheia"; "vomite tua brilhantina feiosa preta; você cortaria minha mandolina com tua careta"; "ruiva feiosa ainda infecciona a sacada do teu seio rosa!"; "coloquem algum recheio em vosso seio!"; "e é pra estas ninharias que tenho rimado! Queria quebrar suas bacias por terem amado!"; "Vocês morrerão em Deus chapadas de vis encantos!" Na música "Convento das Carmelitas" do Skylab o eu-lírico é um serial-killer que invade um convento e vai estrangulando as carmelitas uma por uma numa aritmética viril e alucinante. No poema de Arthur Rimbaud tem a mesma idéia de matemática. Percebe-se um acúmulo de números, uma ordem alquímica fantástica. Ele estrangula uma namorada, vomita na outra, chicoteia a terceira, uma atrás da outra, compulsivamente. Os números estão aí mas sem o lado racional que a matemática pede. Um salto a viagem, um mergulho nas profundezas do sonho.
No final de 2006 mais uma cartada: lança um livro de poemas. Sonetos que perambulam entre o cotidiano dessa ave rara da música popular brasileira. Um canto ao ócio e ao roubo. "Escrever poesia é furtar ao tempo um instante." Aí está a questão que todo escritor contemporâneo está atrelado. O trabalho árduo, estressante, escravatório: esforce-se, mutile-se, anula-se se quiser sobreviver! Com uma linguagem simples e certeira Rogério transita pela cidade do Rio de Janeiro roubando entre o tempo e o espaço seu dia-a-dia, pelo menos como ele acredita que seja. Um cotidiano manchado de cenas bizarras e triviais. A puta fazendo ponto na Lapa. O travesti massagista que transa com seu cliente amante de filosofia. O cara que se lamenta por nunca ter amado ninguém e invade a mente uma dúvida incrível: se seu pau é grande ou não. Ou a constatação do eu-lírico em perceber que não há sentido em ser poeta em terra onde poesia não vende. Para ele o quarto é o símbolo. A imagem "janelas fechadas" é extremamente importante. A preguiça e o ócio é uma negação a realidade, ao "capitalismo", ao pragmatismo e um louvor ao subjetivismo. O travesti a figura mais importante do mundo contemporâneo. Afirma que sua principal atividade é não fazer nada: "A coisa mais difícil que existi é provar para as pessoas que quando estou quietinho, deitado na rede, enrolando o cabelo, é o momento que estou mais trabalhando." Tudo se transforma em poesia. Desde as complexas questões primordiais da existência até mesmo as coisas mais banais possíveis como a masturbação e até mesmo os atos fisiológicos: urinar e defecar. Ácido como sempre afirma que seu "trabalho está ligado à posteridade". Na música o humor negro está bastante vivo, presente. Mas é em seu único livro publicado até então (Debaixo das rodas de um automóvel pela editora Rocco) que atinge sua maior obsessão: o trágico. Está totalmente fixado nessa idéia desde os primórdios de sua jornada artística. A sensação de estrago é tremenda. A explosão também. As vezes o desespero beira à ironia e a ironia em erotismo, sacanagem mesmo. "Se eu fosse Fernando Gabeira poderia contar as aventuras do exílio. Como não sou não sou vou pela avenida compondo absurdas poesias."
Rogério Skylab – filósofo, poeta, músico, crítico de cinema, performer, ex funcionário do Banco do Brasil, é um forte exemplo que o soneto está de volta,com uma roupagem mais atual, é claro, mas está de volta mais do que nunca, mostrando que a literatura contemporânea superou antigos traumas deixado pelos modernistas: não é preciso romper com o passado para criar o novo.
"A poesia não é serviço de utilidade pública." Não é simplesmente apenas escrever. È necessário viver em sua total plenitude como já havia ressaltado em outros tempos Charles Baudelaire, Lord Byron, Stéphane mallarmé e tantos outros deuses da linguagem. "A tragédia no palco não me basta mais, vou transportá-la para a minha vida". Antonin Artaud estava certo.
Rogério Skylab conseguiu.

Radinho de pilha

Num lapso de instante...
Como quem lê um livro
entre duas estações...
Escrevo rápido pra não dar na pinta.

Escrevo como quem rouba.
Sem chamar nenhuma atenção.
Como quem fabrica uma bomba.
No meio do serviço, sem que ninguém me veja,

eu escrevo nestes segundos fugidios.
O que me coube neste mundo, heim?
Furtar ao tempo o instante.

Encosta o ouvido.
Estamos na época da alta definição.
Escuta esse radinho de pilha.

quarta-feira, 18 de março de 2009


Caminhos e descaminhos-


Uma introdução à liberdade –


Diego El Khouri


I

Longe. Distante. Afastamento. Disperso como uma flecha tendida nos vãos do caminho sem destino algum, sem pouso, sem norte."É a verdadeira marcha. Para frente, caminho!" Ninguém soube expressar o verdadeiro sentido da palavra "fuga" mais do que Arthur Rimbaud. A verdade é que ele sempre fugiu. Seja em sua jornada a lugares longínquos, desabitados ou insólitos como a Abissínia, seja nos desvios vertiginosos à beira da loucura ou até mesmo seu abandono definitivo com a literatura no auge dos vinte anos de idade.

Ele era um aventureiro. Um demônio num corpo de criança. "Um místico em estado selvagem" como Claudel definira. Eis o que se perdeu na arte: a fuga e a busca ao desconhecido, o desejo e a vontade de não entregar-se a nada – caminhos, caminhos e caminhos: a liberdade.


II


Muito jovem Rimbaud rompeu com os valores ditos "normais" da sociedade. Para ele "a moral é a fraqueza do cérebro" e a vida deve sentir-se em sua total plenitude. Por isso essa necessidade de não fixar-se a nada, a nenhum local, a ninguém.

Em suas fugas sempre estava sem dinheiro, andando a pé e de barriga vazia. Chegou certa vez a sofrer de febre tifóide devido a inflamação nas paredes do estômago causada pelo atrito da costela contra o abdômen por excesso de caminhar a pé. Na Abissínia andava a cavalo excessivamente. Tudo excessivamente.

Hoje relendo sua obra poética fazendo uma analogia à arte contemporânea pós Rimbaud, percebo o vazio deixado, o abandono em relação ao sentimento desesperador que todo artista traz em si, o sentimento de fuga. É preciso fugir. Alcançar novos horizontes. "Abrir as portas da percepção" como William Blake dizia. Porém há algumas exceções, belas exceções por sinal, como exemplo, Allen Ginsberg,poeta maior da geração beat, exemplo de intensa liberdade criadora e anárquica. Com ele a chama da poesia permaneceu acesa. Ele insistiu na idéia que a poesia não é apenas um produto escrito, e sim uma forma de vida. "O poeta tem que cair na vida, deixar de ser broxa para ser bruxo",dizia Roberto Piva. Sem dúvida essa correlação entre existência e literatura não pode dissociar. "O poeta é ladrão de fogo". Não há limites. O abismo é logo ali. É preciso penar muito para se chegar a sua essência. Baudelaire nos revelou essa faceta. Sem sofrimento,prazer, não há arte. A dúvida é necessária.


III


Mas que arte é essa que é preciso correr, esconder-se? Seria covardia ou fraqueza essa constatação?
Não. o que se está dizendo não é a fuga como uma espécie de não revelar-se.Muito pelo contrário.E sim expandir a mente.Buscar novos caminhos.Transcender.A banalização dessa palavra está presente nos dias atuais tanto na música quanto na literatura.

Ao ligar o rádio sempre me deparo com a melodia (independente do estilo musical) cujos versos "eu me perdi", e "eu preciso fugir", vêm aos meus ouvidos como uma atitude forçada. Não sabem o desespero e a dor dilacerante que essas palavras carregam em si.Investem na bunda mas esquecem o erotismo. A mídia alimenta-se de cadáveres. O novo passa a ser fugaz. Creio numa mudança. A longo prazo,é claro. A esperança permanece viva, embora trôpega. Ah, que ironia! Ao adentrar pela primeira vez no salão onde se realizava o banquete"Vilões-Gentis-Homens" acompanhado do poeta maldito e grande incentivador de Rimbaud, Paul Verlaine, D'Hervilly exclamou ao ver aquela alma inocente e maligna de semblante misterioso "Jesus Cristo entre os homens!" "É o demônio!" Maitre corrigiu para tornar a frase mais coerente com o jovem que aquela noite se apresentava a tantos intelectuais que festejavam seus dons com muita bebida e haxixe.Depois de uma conversa decidiram abrigar o rapaz com os amigos deVerlaine numa espécie de rodízio, porém após um desentendimento com Charles Cros ele abandonou o local e passou a perambular por algumas semanas com os mendigos na Praça Maubert. Nunca se agregara a nada, a ordem nenhuma. Nem aos homens nem a Deus. Mesmo sendo cultuado por toda a França, certa vez disse que nunca voltaria a sua terra natal,pois não tinha amigos lá. Era um transeunte. Além de poeta, um visionário. Poucos souberam representar a dor do existir como Rimbaud e Van Gogh.

Sua poesia sempre será atual. "Nunca será um velho punk". "O melhor éum sono bem bêbado na praia". No livro "Une Sainson en Enfer (Uma estação no inferno)" ele escreve que se via "diante de uma multidão exasperada, frente ao batalhão de fuzilamento, chorando da desgraça que eles não puderam entender, e perdoando!" Teve um momento que esse jovem audaz sentiu necessidade de fazer parte de algo. Deixou o cabelo crescer até os ombros como todo poeta parnasiano. Se cansou do movimento brando e num de seus inúmeros momentos de rebeldia esporrou no copo de um poeta parnasiano. Deixava irritado o padre, professor e bibliotecário Humbert, pelos livros que pedia: tratados de magia,livros de feitiços e contos eróticos. Antes de tudo era irônico, um fanfarrão. "Jesus Cristo entre os homens!"


IV


Sentado agora nessa cadeira carcomida pelo cupim, com uma baita dor nas costas e uma leve embriaguez no olhar, penso na ideal paisagem,nos costumes vulgares e puritanos, nos rituais pagãos, na alquimia,nas religiões e superstições. Nas imagens fixo apenas um momento.Dormita meus pensamentos na vaga lembrança, a infância, a infância, aquerida infância, a liberdade... Que venha a magnífica alienação!O que o futuro nos espera? Morta está a liberdade ou apenas o homem se tornou escravo da máquina? A arte voltará a ter a força de uma bomba atômica? Destruirá dogmas e crenças? Roubará a beleza do espaço?O instante como um estupro?No que se designa a liberdade?E a imobilidade? O homem está destinado a eterna servidão?Há quem diga que liberdade é o resultado de uma visão individualista.Não há barreiras para os que crêem... O trabalho árduo, estressante...Até Rimbaud se entregou aos serviços remunerados, de forma um tanto clandestina, mas se entregou. Tinha que provar para a família que era sério... Não quero provar nada... mas a imobilidade é muito forte como uma morfina que se perde na veia e transforma dias em vazio...noites em claro... "Tenho horror de todas as profissões. Patrões e operários, todos os camponeses, vis. A mão na pena vale a mão na enxada. - Que século de mãos! - Nunca terei a minha mão".

Penso como Rimbaud.

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